joão miguel ♛

domingo, 5 de fevereiro de 2012

 Chamadas Perdidas 4#
Sempre soube que nascemos com um único destino. Morrer. Verdade seja dita. Mas todos sabemos também que boa não é a sensação de que vamos morrendo aos poucos, asfixiados pela sobrevivência, que enche o ar de veneno tão viciante quanto as tuas chamadas, aquelas que esperava debruçado sobre o parapeito da janela, noites a fio, como um ritual tão melancólico quanto as palavras soltas que saiam aconchegadas do denso fumo do cigarro que ardia até embater no imenso chão. « Prazer. » susurrei à noite. « Poder. » pedi à Lua. « Amor. » gritei, numa tentativa estúpida de que ouvisses. E como se já fosse comum, olhei para o relógio que marcavam vinte e três horas e cinquenta e sete minutos, e suspirando, atirei o cigarro enquanto a noite sumia como se nunca lá tivesse estado. « Eu ainda te amo. » ouvi da escuridão, escuridão essa que me enchia o subconsciente, trazendo a mais bonita voz que alguma vez ouvirei. Embalado pelo sono, ainda marquei o teu número, numa tentativa de te conseguir ouvir, majestosa e serena, dona de si e dos que te rodeiam. PI PI PI, chamada perdida. Rejeitas-te com a maior das friezas, mas rejeitas-te. Imagino-te de queixo erguido, sentada na poltrona de que tanto te orgulhavas, aquela onde antigamente rabiscavas doces palavras, que juntas, lhe chamas de poemas,  aqueles que mal me deixavas ler dizendo seres dona de um imenso potencial que escondias de toda viva alma. E eu, eu estava aqui, a rabiscar a nossa história, enfeitando-a tão bem quanto podia. (…) « acorda. vai-te deitar.. », tinha adormecido sobre o meu companheiro, sobre o escritor que só a mim me obedecia. Agarrei no telemóvel, o qual teria caído quando os meus olhos imploraram descanso. « Uma chamada perdida. », piscava irritantemente no estúpido ecran, sim, eras tu, e agora ? eram três horas e quarenta e dois minutos, mas admito, não resisto em ligar-te, vá. (…) « Estou. Ligas-te? », áspero e tirano como a muito não o era. « sim. tenho algo que te quero mostrar. Pagina sessenta e nove do teu livro de matemática. » e puff, chamada perdida. (…) Corri furiosamente a procura do livro, vasculhava a imensa prateleira que julgava não ter nada de útil, passei a casa a pente fino e juntei todos os bocadinhos de escola espalhados e o livro, nada. « BURRO, ESTUPIDO, IGNORANTE. » gritei comigo mesmo, quando deparei com o livro mesmo em cima da secretaria, a qual me deixei de dormir. Sacudi o livro, e suave como uma pena, caiu um bocado de papel, cor de caramelo, rigorosamente dobrado, como uma letra que me fascinava, tão bem desenhada, tão bem centrada, inspirei, e foi então que comecei:

« Bendito sejas, sangue que vagueia
Bombardeado por alma alheia,
Onde coração mole se enterra
Em corpo de pessoa e meia. »


Okay, voltei então a encher-me de perguntas, mas o sono era mais forte que qualquer outra coisa, e como se não bastasse, apoderou-se de mim melhor que ninguém.

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